segunda-feira, 1 de junho de 2020

Pais e filhos: voltem aos vossos lugares!

O (des)confinamento por causa da pandemia COVID-19 é uma oportunidade para que os pais reocupem o lugar de pais e os filhos o lugar dos filhos.

Muitas das perturbações familiares que acompanho na minha atividade clínica dizem respeito à forma como as famílias se organizam, desde algumas gerações até ao presente, em função de uma inversão total ou parcial dos papéis geracionais. Aliás, pensando bem, em muitas famílias que conheço para além da clínica, e se calhar até nalguns segmentos da minha própria família, se pode constatar esta organização, onde o que está distorcido é a inversão dos papéis de cuidador e cuidado. Nessas famílias a função atribuída às crianças, e cumprida, é a da nutrição emocional dos pais, na tentativa de preencher os vazios emocionais dos adultos que sentem de poder salvar, resgatar, proteger. São exemplo disto os filhos que dormem com os pais para preencher o vazio que existe na cama dos pais, filhos que sugam a atenção dos pais, protegendo-os contra a solidão que sentiriam sem essa distração, filhos que fazem muito barulho ou estragos na casa garantindo que os pais não discutam entre eles, filhos que não podem brincar sozinhos porque deixariam o casal dos pais confrontado com uma intimidade que se esbateu ao longo do tempo.

A intimidade "perdida" de um casal que não sabe como recuperá-la, precipita muitas vezes a conjugalidade para um desencontro sentido como fatal, que perdurará no tempo, com sérias consequências para a saúde mental de cada um dos envolvidos, a menos que se possa falar dela.
A parentalidade tem várias funções evolutivas tais como demonstrar às gerações anteriores a capacidade de produzir novas famílias, ou de criar novas formas, adaptativas à mudança da natureza, da sociedade e da cultura e dos próprios organismos biológicos. Mas a parentalidade também tenta responder, muitas vezes, às lacunas emocionais do passado, depositando nas crianças a expectativa, também essa potencialmente perigosa para a saúde mental, de resgatarem o amor que aos pais faltou enquanto filhos. Uma criança que existe como "a razão de viver" de um pai ou de uma mãe é uma criança que não poderá gerar nem receber livremente amor para, ou de , mais ninguém, permanecendo assim condenada a sentir culpa por estar a trair o "amor mais importante". O amor mais importante não é por um pai, ou por uma mãe, por um namorado ou por uma amiga ou por um filho, mas sim aquele que é livre de existir. E com isto não estou a dizer que o amor é incondicional. Não é. Da mesma forma como a liberdade também não o é. E uma das condições parece ser a de que se possa potenciar a expressão das individualidades e, ao mesmo tempo, a parceria, a vontade de essas crescerem juntas.

Como é que podemos então combater a inversão dos papéis?

Em primeiro lugar permitindo-nos ser pessoas, mulheres e homens, para além das funções que temos. Se eu não posso ser quem eu sinto que sou então com certeza que vai aparecer alguém que, gostando de mim, se dedique a arranjar-me uma razão de viver. E esse alguém, seja filho, filha, ou par amoroso, não poderá ser ele próprio porque é, sobretudo, a função de me fazer feliz. E assim vamos andando de conto romântico em conto romântico, onde todos somos sempre metades. Se partirmos do principio que a parentalidade comporta, na grande maioria das vezes, um desencontro na conjugalidade ou intimidade do casal, o desafio será o de encontrar recursos nesse desencontro, descobrindo-lhe as funções positivas.

Costuma ser útil aquela pergunta: "um tubarão e um papagaio apaixonam-se...onde podem viver?" Nem o tubarão poderá desenvolver asas nem o papagaio conseguirá inventar guelras e barbatanas a tempo de se adaptar à água. Terão que encontrar um território de contacto onde a sobrevivência não implique deixarem de ser quem são. Vão ter que dizer um ao outro o que é que querem, como é que respiram e quando têm falta de ar, vão ter que saber dizer onde podem ou não estar, onde gostam ou não gostam. Um pequeno tubaraio ou um papagãozinho, não os vai poder ajudar e vai provavelmente salientar as diferenças, é isso que será mais natural.
Ou seja, se a existência de filhos vem realçar a diferença nos pais, talvez isso se deva ao facto de que é efetivamente importante ser diferente e cultivar essa diferença. Cultivar a diferença numa família é promover o confronto real e a curiosidade entre todos, interpretando menos e revelando mais sobre as necessidades. Quanto tempo mais vamos continuar a reforçar o mito de que o verdadeiro amor é o que não precisa de palavras, o que se basta num simples olhar ou gesto? Esse amor pode existir e até mesmo ser fundamental quando se trata de um pai ou mãe por um bebé ou uma criança que ainda não desenvolveram a capacidade de expressar claramente as suas necessidades e precisam da interpretação dos adultos como estratégia de eleição para a elaboração de respostas aos problemas que surgem.

Os adultos, por sua vez, precisam de mapas para se poderem aproximar e respeitar. O que acontece é que na história geracional de muitas famílias os filhos aprenderam que não se pode ou não se deve explicitar as próprias necessidades porque isso é sinal de fraqueza e cabe aos pais transformar esse modelo da vulnerabilidade expressa como limitação em expressão das vulnerabilidades como competência e recurso.
Dois adultos têm a responsabilidade de construir um modelo positivo do confronto, da discordância com respeito, da vulnerabilidade partilhada. A nossa vulnerabilidade é a nossa força mais importante porque nos ajuda a identificar quem queremos ao nosso lado, porque é uma força que nos inclina para os outros sem o propósito nem a potencia de os aniquilar. Quando um adulto não pode confrontar o outro, não pode dizer o que sente sob pena de poder magoar, os filhos quererão proteger quem não fala por medo. Os nossos neurónios espelho, responsáveis pela empatia, sintonizar-se-ão sempre melhor com quem precisa de ser ajudado e não tem formas para o fazer. Mas para além da atrocidade de ter que escolher um lado, abre-se dessa forma a porta para a vontade de pertencer a um modelo que não tem que falar, não tem que se expor e sobretudo não tem que entristecer ou fragilizar porque um filho ou uma filha o compensará. Os filhos não suportam muito tempo esse peso sem sequelas graves para a sua autonomia e os pais não suportam muito tempo essa forma de dependência sem sequelas graves no seu sucesso ou satisfação relacional, social e profissional, onde não é raro o aparecimento de pensamentos ou condutas autodestrutivas.

Posto isto sugiro vivamente que o (des)confinamento seja aproveitado para os adultos falarem, conhecerem nos parceiros e parceiras o que não conhecem ainda, procurando utilizar perguntas novas e diferentes das que costumam fazer. Sugiro que estes adultos encontrem momentos para brincar com os filhos mas também  momentos em que os filhos sejam dispensáveis porque os adultos estão a namorar, ou a discutir, e não há problema. Que lhes seja devolvido sobretudo esta noção de que não são os protetores dos pais e que lá porque os pais estão a resolver coisas entre eles, não quer dizer que não saibam cuidar de si.
E, muito importante também, penso ser a decorrente conclusão a partir do exposto até agora, que, em caso de crise aguda na relação entre os pais não são os filhos a decidir se um casal deve estar junto ou não. Se os adultos sentem que não conseguem discutir sozinhos podem pedir ajuda aos profissionais de saúde, psicólogos e terapeutas familiares, que os acompanharão neste processo. Há, inclusivamente, muitos comportamentos sintomáticos de crianças e adolescentes que perdem relevo quando estes sentem que existe alguém que finalmente toma conta dos pais. Pedir ajuda, falar do que se sente e discordar, mesmo que com algum receio, é sempre mais produtivo do que silenciar, enviar pistas, ou concordar por medo. Se não for possível na relação de casal, peçam ajuda, não façam dos vossos filhos os vossos salvadores porque nunca serão.

Se quiser coloque aqui as suas questões, comentários ou pedidos de ajuda. Também pode visitar a equipa da casaestreladomar.pt e colocar-nos diretamente as suas questões através do e-mail geral@casaestreladomar.pt

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Hesitação - a arte do crescimento


This photo of The Art House is courtesy of TripAdvisor

Estávamos a construir uma piscina na areia, abrindo valas com as mãos que viriam a servir de fossas protetoras daquela pequena represa onde os seus pezinhos chapinhavam com confiança. Cada porção de areia líquida cavada aos despejos das ondas era atirada para os rebordos da represa, aumentando o declive entre o fundo da vala e o cume das paredes que lhe ladeavam os pezinhos. Ele ganhava cada vez mais confiança e entusiasmo, não porque fossem sólidas as paredes mas porque eram seguros os olhares das mães. Uma observava com paciência o que a outra construía com decisão. Sentia-se desejado. Começou também a cavar na areia com os dedos e atirava o que recolhia para o chão, afirmando a prova de aprendizagem por empréstimo. O amor raramente é dado, pelo menos ao início. É implícito na transmissão e é explícito na imitação. Então ele foi imitando. Depois algo mudou. Começou a ir cada vez mais longe recolher a areia líquida e já não atirava para a represa. Atirava-a mesmo para as covas das pegadas dos seus pezinhos e olhava para ver o que acontecia. Tinha levado com ele o olhar interessado da mãe e o braço poderoso da outra. Dava mesmo a sensação que tinha que ir mais longe para saber o que era dele. Não deixava, porém, de voltar à represa para molhar o pé e rir-se para as mães gritando vitória. Mas da última vez algo voltou a mudar e desta vez foi mais grave. Foi arrancar um pedaço de areia tão longe que quando se preparava para o atirar para o seu caminho reparou que o mar estava mais perto dele do que o seu próprio caminho. As suas pegadas perdiam vantagem à aventura marítima. Hesitou e ficou parado por uns segundos. Aquela pausa tão determinada não conseguia disfarçar o interesse:  que efeito faz a areia líquida na espuma atiçada? Que reação pode causar a certeza na dúvida? Seria o seu braço tão poderoso se abandonasse o propósito da represa? E quem a vigiaria a represa as mães? Não havia nenhuma garantia que lhe desse mais prazer o desencontro dos caminhos ou a possibilidade de reencontro do seu. Deambulava assim em pequenos círculos, com os restos das conchinhas na mão, saboreando o centro da sua ultima pegada e a vontade de agredir o mar. Não havia dor, muito menos atraso de nada, apenas avanço de tudo. A tarde estava ganha.

sábado, 17 de março de 2018

Certificação do grau de Supervisor em Intervenção Sistémica e Familiar

Ontem foi um dia importante. Desde que me especializei em Terapia relacional sistémica, mais conhecida por Terapia Familiar, em 2008 na Accademia di Psicoterapia della Famiglia em Roma, que tenho tido uma relação especial de proximidade com a Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar (SPTF). Em primeiro lugar, com o Professor Daniel Sampaio, fundador da instituição, que foi desde sempre um mentor e parceiro de reflexões e estimulações que ajudaram a alimentar a curiosidade pelos diversos mundos familiares e de quem a influência se ressente inevitavelmente no trabalho com as famílias que tenho vindo a realizar na associação Casa Estrela do Mar, o centro de Psicoterapia e Educação Artística que criei em 2011, em conjunto com duas colegas, e que se encontra desde aí em continuo crescimento. Posteriormente com as direções e os respetivos elementos, como é o caso da Drª Ana Gomes (na foto), da Drª Ana Paula Apolónia e da Drª Natália Colaço (foto), profissionais experientes neste campo com quem tenho tido o prazer de colaborar em diversos contextos e que me deram também a oportunidade de participar em diversas ações formativas, sendo a mais recente a do ano passado, de 2017, onde me foi proposto acompanhar o ultimo ano do curso de especialização em terapia familiar. A experiência resultou muito bem, tive o prazer de trabalhar em parceria com a Drª Alexandra Alvarez e os dois enfrentámos os desafios de um grupo em transformação, questionando modelos, oferecendo, recebendo e partilhando visões sistémicas que julgo terem trazido uma grande dose de crescimento para todos os envolvidos, para mim assim foi. Foi também assim que senti, com afeto e desafio, o diploma que me foi entregue ontem oficialmente pela SPTF que me certifica como Supervisor em Intervenção Sistémica Familiar. Reforçaram-se laços, valorizaram-se percursos, promoveram-se pertenças e, sobretudo, sublinharam-se compromissos por esta tarefa conjunta que se reconhece entre estes colegas que é a de prosseguir nessa esteira do aprofundamento das ciências sistémicas, estudando e intervindo nos desafios das estruturas familiares de hoje, onde tudo é sempre mais que a soma das suas partes. Obrigado.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Reflexão sobre o Acolhimento Institucional

childtrends.org
ESTADO DE EMERGÊNCIA CRÓNICA

Chegas e entras. Não porque queiras mas porque tem de ser. A tua vinda é apenas uma vírgula numa luta incessante que vai durar toda a vida para mostrares a ti mesmo que és mais forte do que a morte que tens por dentro. Morte da liberdade e do valor, enquanto de vida te resta a voracidade do medo, que em metástases de ódios e culpas se expande pela única competência que te resta: conseguir afastar o agressor. E consegues, tornando-te tu o agressor porque és claro na mensagem: "ninguém faz mais de mim o que quiser". Mas faz. O tribunal decide que vais novamente para uma unidade de emergência de uma casa de acolhimento e que durará apenas dois dias. Passados os dois dias, irás para um centro terapêutico onde te vão ajudar a seres menos violento. Mas não vais. Passam dois dias, mais dois dias, duas semanas, dois semestres e  continuas em unidade de emergência da casa de acolhimento, fazendo das tuas, desesperando e exigindo verdade, praticando a mentira. Só podes mentir. É o código vigente. Até que pegas fogo à casa e foges de vez. Nunca mais hás de ser verdadeiro com ninguém. Nem contigo próprio. Aprendeste a pior lição da vida, só podes confiar na mentira. Mas a vida mais ninguém te a tira... a não seres tu.

Esta realidade tão dramática e esta mentira institucional está assim determinada no quotidiano de jovens encaminhados para a unidade de emergência de casas de acolhimento que dão o possível e o impossível para proteger as crianças e jovens do perigo e da violência a que foram traumática e involuntariamente expostos. Os profissionais destes centros deparam-se todos os dias com a inevitabilidade da traição: ou traem a confiança dos adolescentes mentindo-lhes todos os dias sobre a duração da medida de "proteção" ou desqualificam os tribunais e as comissões de proteção revelando ao adolescente que a medida é mentirosa e que o seu estado de emergência será crónico, com termo indeterminado. Existem centros de acolhimento que lutam todos os dias pela transparência e sinceridade com os adolescentes que recebem na unidade de emergência quase todas as semanas. Estes profissionais decidiram que não se pode esperar pelo final da emergência e que a verdadeira emergência é a do acolhimento. Colocam em risco, todos os dias, a sua própria saúde mental, para lidar com a tensão da revolta que todos estes adolescentes trazem da fuga da vida. Tentam transmitir a melhor lição da vida: há alguém que se importa.


Transparência e sinceridade não são apenas valores, são armas pacíficas contra o crime. Estão acessíveis a toda gente. São um dever de toda a gente. As famílias, as instituições, as sociedades têm urgentemente que aprender a promover relações de confiança, dizendo a verdade e acompanhando o processo de construção de verdades. A verdade é a ideia que fazemos do que construímos uns com os outros. Se não construímos nada uns com os outros a verdade só pode ser uma: a de que a relação é uma mentira.

domingo, 15 de novembro de 2015

Artigo


Os meus filhos têm mesmo que saber matemática?!

Hoje estava a ler esta entrevista do jornal "Público" e comecei a perguntar-me sobre a razão dos dissabores que corroem tantas relações entre educadores e educandos relativamente à disciplina da matemática. Embora sendo psicólogo, que subentende uma capacidade especial para tentar entender o ponto de vista dos outros, nem sempre me é muito fácil perceber o desinteresse pela matemática, por uma simples razão: eu adorava matemática! Até ao meu décimo primeiro ano da escola eu devorava equações e lembro-me que chegava a ser quase fisiológico o prazer que obtinha com a resolução de uma equação difícil. Mas esse arrebatamento por essa descarga de algarismos não residia apenas no conteúdo das equações. Desde muito cedo que a minha avó me ensinou matemática. A matemática ensinada da minha avó continha duas características fundamentais: disciplina e intriga. A disciplina era uma espécie de negociação dos meus tempos livres, ou seja, se eu queria daí a pouco ir brincar com o meu amigo Rodrigo (e essa era uma das principais razões pelas quais eu me levantava da cama todos os dias nessa altura, para brincar com o meu amigo) então primeiro tinha que me concentrar um bocadinho. Não havia hipótese. Era um tempo que ela tinha escolhido para estar comigo com toda a sua atenção, empenhada em transmitir-me conhecimento, ao qual se seguiam pelo menos duas horas de recreio, não podia recusar. A intriga era a forma apaixonada como ela me seduzia para o entendimento do mundo abstrato e complexo, através de pequenas leis que o tornavam mais simples. Não havia uma tarde de exercícios de matemática que não começasse com uma história, sobre a vida de alguns matemáticos, ou sobre a razão pela qual uma fórmula apareceu. A intriga, muitas vezes, era saber o que me iria contar a minha avó no dia seguinte e que equação é que ela me iria propor para podermos celebrar em conjunto o sucesso da resolução. Que história seria a de amanhã acerca do "x" e quanto tempo ía eu levar a encontrar o "y", para depois ir encontrar o Rodrigo? O matemático entrevistado na entrevista mencionada em cima, refere que o seu entusiasmo pela matemática é porque se trata de uma ciência que liga tudo, desde a geometria à mecânica dos fluidos e por aí fora e por ser também a melhor forma com que o cérebro se treina a estar concentrado para depois resolver outro tipo de problemas. Para mim, a matemática teve uma função parecida, ensinou-me a ligar-me à minha avó e ao meu amigo, estabelecendo as regras que permitiam garantir que essa sequência de relações se repetia de dia para dia, aparentemente sem fim. Talvez os filhos não precisem mesmo de aprender matemática, embora a utilizem por vezes sem se darem conta. Talvez o que os filhos precisem é de alguém que lhes apresente a vida como uma aventura intrigante, onde as complexidades podem ter uma representação mais simples, onde chegar a uma conclusão é um objectivo para uma celebração conjunta e onde a regra e a capacidade para adiar, por momentos, outros prazeres, obriga o prazer a repetir-se todos os dias.

Participação em debate escolar

Os Sonhos dos Pais para os Filhos
 Há já uns bons anos que tenho estabelecido uma colaboração muito próxima com a Escola Secundária de Benfica. Para além da estima pelos elementos da direção e coordenação, nomeadamente o Professor Esperança e a Professora Sameiro, é uma escola preocupada pelas questões da saúde mental e das várias vezes que estabeleci contacto com os alunos apercebi-me que estes são os primeiros a querer discutir, debater, investigar, sobre as questões da saúde mental. Desta vez o convite foi para falar com os pais, tal como tenho feito com outras escolas, precisamente para discutir sobre a forma como as expectativas destes influenciam o sucesso não só profissional e académico mas também emocional, social e intelectual dos filhos. Espero ser o primeiro de muitos encontros, felicitando desde já a iniciativa da Associação de Pais desta escola.

 

domingo, 23 de agosto de 2015

Vontade de morrer no verão

fonte da imagem: cleofas.com.br
Vontade de morrer no verão


Existe quem viva a fugir da morte e existe quem repugne a vontade de morrer. São esquemas de sobrevivência imbuídos numa cultura que toma a morte como o demónio da vida, uma espécie de aberração enfeitiçada que quando é personificada na imagem ou intenção de alguém, condena à guilhotina social, à pena e à punição. Somos ainda escravos de uma inquisição que nos matou os monstros em praça pública, esses monstros que mais não eram se não a manifestação da vida, com toda a diversidade, contradição e provocação que essa vida implica. Esses monstros são também os receios da mudança alojados nas pupilas dos olhos de quem mata. Quem quer matar é quem não consegue ou não pode tolerar a dor da transformação e quem quer morrer é quem não pode ou não consegue viver sem ela (transformação). Todos morremos todos os dias. Todos queremos desaparecer de vez em quando. Mas nunca queremos acabar com a vida! A vontade de morrer é uma vontade de mudança que intensifica quando nos obstruem os horizontes.

No verão a vontade de morrer pode intensificar-se. Tudo está quente e aberto à nossa volta, condenando qualquer espécie de frio ou aperto do coração a uma enorme sensação de isolamento e alienação. Em Julho e Agosto conversei na consulta com rapazes e raparigas que queriam desaparecer, acabar com tudo. Relações que terminaram abruptamente ou uma crítica destrutiva de alguém próximo e importante foram algumas das hecatombes enunciadas, também designadas como factores precipitantes das tentativas de morte que acabariam por desencadear, através de uma ingestão desesperada mas planeada, dos medicamentos recentemente prescritos pelo médico psiquiatra.

Duas conclusões são inevitáveis quando se conversa a fundo sobre a morte: em primeiro lugar, raramente a morte pretende o fim, a morte vislumbra, sobretudo, transformação (da própria imagem, da relação consigo próprio e com os outros, das expectativas dos outros face ao próprio desempenho, entre tantos outros); em segundo lugar, o factor precipitante nunca explica a totalidade do desespero. As pessoas com vontade de morrer precisam, acima de tudo, de sentir que lhes é reconhecido o direito a sofrer, direito que lhes foi sonegado pelos rastos das tais guilhotinas sociais. A perda da mãe ou do pai numa idade precoce, um contexto de violência traumática, um abuso sexual por parte de um familiar são, por vezes, minas de silêncio transportadas num corpo fragilizado e gerido por uma cabeça que se rege, desde o trauma, por um comando tão eficaz quanto fatal: "tens que andar para a frente, não podes parar!".

Numa das ultimas consultas de Julho, Pedro confessava-me que talvez pudesse acreditar na vida se um dia entrasse em casa e alguém lhe dissesse "não faz mal". "Não faz mal", explicou-me o Pedro, é não injetar no sofrimento a urgência da cura. Essa urgência já ele tem há muito tempo. O que Pedro não tem é um plano de contingência partilhado onde seja possível ficar a quatro mãos com a dor, no caso desta não se ir logo embora. O que Pedro quer não é fácil. Mas também não é difícil. É apenas sentir a dor mais humana e menos demoníaca. É não ser guilhotinado pelos seus gostos, preferências ou intenções de vida. O que o Pedro precisa é de estar na dor. Estar. Na dor. E nesse estar, transformar uma relação. Na realidade, a única coisa que o Pedro quer que morra, é a condição contrária, ou seja, a que determina que só é possível construir uma relação se não doer. Esta intenção de Pedro vivemo-la nós todos os dias nas nossas relações dez segundos antes de calarmos as angustias, silenciarmos os medos e renunciarmos a um verdadeiro questionamento de nós próprios por medo de ferir os outros. Mas, tal como nas praias do nosso agosto, só a hipótese real de nos ferirmos nos faz sentir tão curiosos pelos mistérios marinhos e fascinados por essa exploração.

Daqui resulta que uma sugestão minha para este verão é que nos perguntemos uns aos outros o que é que dói. Que não deixemos despercebido nem abandonado na bússola interna de cada um qualquer vestígio de dor. Que esmiucemos a solidão sem afunilar os túneis do pensamento. Que convidemos um amigo, amiga, tio, sobrinha, pai, avó, a estar um pouco na dor. Que perguntemos a essa gente o que não lhes está a correr bem ou o que mudariam se pudessem, neste momento da vida deles. E, se não tivermos resposta para a resposta deles, que, muito simplesmente, nos deixemos estar, proferindo em voz alta ou em silêncio a melhor das encomendas: "não faz mal".

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Conflito de Casal

fonte: guystuffcounseling.com

Pai desleixado ou mãe exigente?


Hoje um casal veio pedir-me ajuda para as constantes discussões sobre os cuidados com o filho de 8 anos: "não queremos invadir o nosso filho com o nosso stress mas julgamos que ele já vai acusando um bocadinho, fica nervoso à hora de deitar, e tem dificuldade em adormecer!". 

Por vezes reproduzimos na nossa casa, no nosso ninho, com os nossos parceiros ou parceiras e filhos ou filhas, um cenário de relações que espelham as dificuldades que trazemos de trás, das relações com a nossa família de origem, principalmente no que toca à negociação entre a satisfação das nossas necessidades emocionais e as dos outros. Para este casal, foi a reação ansiosa do filho que lançou o sinal de alerta e resolveram, como outros casais, recorrer à terapia de casal. 

Joana queixa-se que André "não é capaz de cuidar do filho, que pode ficar tão ou mais ansioso do que ele se tiver que lhe dar de comer, ou de vestir, ou resolver qualquer tipo de pequeno acidente, é tudo um drama!...". Partilham comigo o momento em que André se esqueceu de levar a mochila com os cadernos para a escola, precisamente no dia em que o filho ía ser avaliado. Disse Joana: “apenas funcionou porque ele me estava sempre a ligar a perguntar o que é que devia vestir ao filho... e então, mais tarde, acabei por ligar eu a confirmar se estava tudo bem, quando, já no carro, ele me disse que não tinha levado a mochila. Acha normal, Doutor?"
Há muito tempo que Joana sente necessidade de ter tudo controlado e organizado, caso contrário tudo se desmorona. Recorda o momento em que o pai morreu, quando era pequena, a partir do qual teve que gerir a aflição da mãe que perdeu todas as capacidades de tomar decisões. Joana teve que criar uma estrutura que não falhasse, que não a deixasse sentir-se a si própria, porque se promovera, ou melhor, fora promovida, a cuidadora da própria mãe. O uso do termo "promoção" é porque acredito que quando estamos a desenvolver a nossa personalidade somos principalmente guiados por uma necessidade de validação, como se se tratasse de uma espécie de promoção emocional que nos leva a sentirmos que pertencemos àqueles que nos fazem crescer. Precisamos de nos sentirmos válidos porque isso nos autoriza a avançar sob o aval de quem consideramos competente para realizar a nossa avaliação.


Qual é a noção de competência que atribuímos ou reconhecemos nos outros quando temos 10 anos de idade? 

Provavelmente a competência, quando somos novos, implica uma sensação de influência, proteção, poder, afeto, interpretação frequente dos nossos sinais e resposta a eles. Penso, portanto, que uma criança, perante um acontecimento de vida crítico familiar que destitui a pessoa competente do lugar de competência, como a morte de um pai ou uma mãe, fará de tudo para restabelecer o equilíbrio emocional do seu protetor ou protetora. Neste processo, tendencialmente irracional, a criança acaba enfeitiçada no seu próprio feitiço, ou seja, torna-se ela própria competente, validante, crítica, gestora, cuidadora e todos os outros “oras” característicos dos adultos em posição de figuras de competência. Apenas a competência lhe trará validação enquanto que toda e qualquer aflição ou erro serão percebidos como negativos, nocivos e sinónimos de cristalização. Por esta razão, André não tem competência. Não pode ser responsável nem cuidador porque se aflige. 
André, por sua vez filho único de pais distantes, frios e autoritários, construiu o seu universo de validações através de silêncios, obediências e sucessos escolares, desbravando sempre que possível o seu mundo de aventuras privadas. Através de conversas consigo próprio aprendeu a jogar xadrez, a brincar aos legos e a ler nos seus próprios sentimentos os sentimentos dos outros. Não era autorizado a entrar nos diálogos, porque incomodava. Respondendo a Joana, diz que está farto de ser um saco de box, que "apanha, apanha e volta a apanhar”. Gostava que Joana tivesse um pouco mais de calma com a crítica, que fosse mais relaxada, que confiasse nas suas competências. Mas Joana não pode confiar e André não se pode zangar porque não se sente legitimado para responder. Joana e André criaram um cenário relacional bastante familiar para cada um deles. Aliás, Joana e André criaram “o” cenário familiar, cuja trama perpetua as dificuldades de afirmação dos filhos em relação aos pais. Não podem arriscar um confronto verdadeiro porque sairiam destruídos ou destruidores. Não podem sequer imaginar que o erro de cada um poderia ser finalmente a liberdade do outro.