domingo, 15 de novembro de 2015

Artigo


Os meus filhos têm mesmo que saber matemática?!

Hoje estava a ler esta entrevista do jornal "Público" e comecei a perguntar-me sobre a razão dos dissabores que corroem tantas relações entre educadores e educandos relativamente à disciplina da matemática. Embora sendo psicólogo, que subentende uma capacidade especial para tentar entender o ponto de vista dos outros, nem sempre me é muito fácil perceber o desinteresse pela matemática, por uma simples razão: eu adorava matemática! Até ao meu décimo primeiro ano da escola eu devorava equações e lembro-me que chegava a ser quase fisiológico o prazer que obtinha com a resolução de uma equação difícil. Mas esse arrebatamento por essa descarga de algarismos não residia apenas no conteúdo das equações. Desde muito cedo que a minha avó me ensinou matemática. A matemática ensinada da minha avó continha duas características fundamentais: disciplina e intriga. A disciplina era uma espécie de negociação dos meus tempos livres, ou seja, se eu queria daí a pouco ir brincar com o meu amigo Rodrigo (e essa era uma das principais razões pelas quais eu me levantava da cama todos os dias nessa altura, para brincar com o meu amigo) então primeiro tinha que me concentrar um bocadinho. Não havia hipótese. Era um tempo que ela tinha escolhido para estar comigo com toda a sua atenção, empenhada em transmitir-me conhecimento, ao qual se seguiam pelo menos duas horas de recreio, não podia recusar. A intriga era a forma apaixonada como ela me seduzia para o entendimento do mundo abstrato e complexo, através de pequenas leis que o tornavam mais simples. Não havia uma tarde de exercícios de matemática que não começasse com uma história, sobre a vida de alguns matemáticos, ou sobre a razão pela qual uma fórmula apareceu. A intriga, muitas vezes, era saber o que me iria contar a minha avó no dia seguinte e que equação é que ela me iria propor para podermos celebrar em conjunto o sucesso da resolução. Que história seria a de amanhã acerca do "x" e quanto tempo ía eu levar a encontrar o "y", para depois ir encontrar o Rodrigo? O matemático entrevistado na entrevista mencionada em cima, refere que o seu entusiasmo pela matemática é porque se trata de uma ciência que liga tudo, desde a geometria à mecânica dos fluidos e por aí fora e por ser também a melhor forma com que o cérebro se treina a estar concentrado para depois resolver outro tipo de problemas. Para mim, a matemática teve uma função parecida, ensinou-me a ligar-me à minha avó e ao meu amigo, estabelecendo as regras que permitiam garantir que essa sequência de relações se repetia de dia para dia, aparentemente sem fim. Talvez os filhos não precisem mesmo de aprender matemática, embora a utilizem por vezes sem se darem conta. Talvez o que os filhos precisem é de alguém que lhes apresente a vida como uma aventura intrigante, onde as complexidades podem ter uma representação mais simples, onde chegar a uma conclusão é um objectivo para uma celebração conjunta e onde a regra e a capacidade para adiar, por momentos, outros prazeres, obriga o prazer a repetir-se todos os dias.

Participação em debate escolar

Os Sonhos dos Pais para os Filhos
 Há já uns bons anos que tenho estabelecido uma colaboração muito próxima com a Escola Secundária de Benfica. Para além da estima pelos elementos da direção e coordenação, nomeadamente o Professor Esperança e a Professora Sameiro, é uma escola preocupada pelas questões da saúde mental e das várias vezes que estabeleci contacto com os alunos apercebi-me que estes são os primeiros a querer discutir, debater, investigar, sobre as questões da saúde mental. Desta vez o convite foi para falar com os pais, tal como tenho feito com outras escolas, precisamente para discutir sobre a forma como as expectativas destes influenciam o sucesso não só profissional e académico mas também emocional, social e intelectual dos filhos. Espero ser o primeiro de muitos encontros, felicitando desde já a iniciativa da Associação de Pais desta escola.

 

domingo, 23 de agosto de 2015

Vontade de morrer no verão

fonte da imagem: cleofas.com.br
Vontade de morrer no verão


Existe quem viva a fugir da morte e existe quem repugne a vontade de morrer. São esquemas de sobrevivência imbuídos numa cultura que toma a morte como o demónio da vida, uma espécie de aberração enfeitiçada que quando é personificada na imagem ou intenção de alguém, condena à guilhotina social, à pena e à punição. Somos ainda escravos de uma inquisição que nos matou os monstros em praça pública, esses monstros que mais não eram se não a manifestação da vida, com toda a diversidade, contradição e provocação que essa vida implica. Esses monstros são também os receios da mudança alojados nas pupilas dos olhos de quem mata. Quem quer matar é quem não consegue ou não pode tolerar a dor da transformação e quem quer morrer é quem não pode ou não consegue viver sem ela (transformação). Todos morremos todos os dias. Todos queremos desaparecer de vez em quando. Mas nunca queremos acabar com a vida! A vontade de morrer é uma vontade de mudança que intensifica quando nos obstruem os horizontes.

No verão a vontade de morrer pode intensificar-se. Tudo está quente e aberto à nossa volta, condenando qualquer espécie de frio ou aperto do coração a uma enorme sensação de isolamento e alienação. Em Julho e Agosto conversei na consulta com rapazes e raparigas que queriam desaparecer, acabar com tudo. Relações que terminaram abruptamente ou uma crítica destrutiva de alguém próximo e importante foram algumas das hecatombes enunciadas, também designadas como factores precipitantes das tentativas de morte que acabariam por desencadear, através de uma ingestão desesperada mas planeada, dos medicamentos recentemente prescritos pelo médico psiquiatra.

Duas conclusões são inevitáveis quando se conversa a fundo sobre a morte: em primeiro lugar, raramente a morte pretende o fim, a morte vislumbra, sobretudo, transformação (da própria imagem, da relação consigo próprio e com os outros, das expectativas dos outros face ao próprio desempenho, entre tantos outros); em segundo lugar, o factor precipitante nunca explica a totalidade do desespero. As pessoas com vontade de morrer precisam, acima de tudo, de sentir que lhes é reconhecido o direito a sofrer, direito que lhes foi sonegado pelos rastos das tais guilhotinas sociais. A perda da mãe ou do pai numa idade precoce, um contexto de violência traumática, um abuso sexual por parte de um familiar são, por vezes, minas de silêncio transportadas num corpo fragilizado e gerido por uma cabeça que se rege, desde o trauma, por um comando tão eficaz quanto fatal: "tens que andar para a frente, não podes parar!".

Numa das ultimas consultas de Julho, Pedro confessava-me que talvez pudesse acreditar na vida se um dia entrasse em casa e alguém lhe dissesse "não faz mal". "Não faz mal", explicou-me o Pedro, é não injetar no sofrimento a urgência da cura. Essa urgência já ele tem há muito tempo. O que Pedro não tem é um plano de contingência partilhado onde seja possível ficar a quatro mãos com a dor, no caso desta não se ir logo embora. O que Pedro quer não é fácil. Mas também não é difícil. É apenas sentir a dor mais humana e menos demoníaca. É não ser guilhotinado pelos seus gostos, preferências ou intenções de vida. O que o Pedro precisa é de estar na dor. Estar. Na dor. E nesse estar, transformar uma relação. Na realidade, a única coisa que o Pedro quer que morra, é a condição contrária, ou seja, a que determina que só é possível construir uma relação se não doer. Esta intenção de Pedro vivemo-la nós todos os dias nas nossas relações dez segundos antes de calarmos as angustias, silenciarmos os medos e renunciarmos a um verdadeiro questionamento de nós próprios por medo de ferir os outros. Mas, tal como nas praias do nosso agosto, só a hipótese real de nos ferirmos nos faz sentir tão curiosos pelos mistérios marinhos e fascinados por essa exploração.

Daqui resulta que uma sugestão minha para este verão é que nos perguntemos uns aos outros o que é que dói. Que não deixemos despercebido nem abandonado na bússola interna de cada um qualquer vestígio de dor. Que esmiucemos a solidão sem afunilar os túneis do pensamento. Que convidemos um amigo, amiga, tio, sobrinha, pai, avó, a estar um pouco na dor. Que perguntemos a essa gente o que não lhes está a correr bem ou o que mudariam se pudessem, neste momento da vida deles. E, se não tivermos resposta para a resposta deles, que, muito simplesmente, nos deixemos estar, proferindo em voz alta ou em silêncio a melhor das encomendas: "não faz mal".

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Conflito de Casal

fonte: guystuffcounseling.com

Pai desleixado ou mãe exigente?


Hoje um casal veio pedir-me ajuda para as constantes discussões sobre os cuidados com o filho de 8 anos: "não queremos invadir o nosso filho com o nosso stress mas julgamos que ele já vai acusando um bocadinho, fica nervoso à hora de deitar, e tem dificuldade em adormecer!". 

Por vezes reproduzimos na nossa casa, no nosso ninho, com os nossos parceiros ou parceiras e filhos ou filhas, um cenário de relações que espelham as dificuldades que trazemos de trás, das relações com a nossa família de origem, principalmente no que toca à negociação entre a satisfação das nossas necessidades emocionais e as dos outros. Para este casal, foi a reação ansiosa do filho que lançou o sinal de alerta e resolveram, como outros casais, recorrer à terapia de casal. 

Joana queixa-se que André "não é capaz de cuidar do filho, que pode ficar tão ou mais ansioso do que ele se tiver que lhe dar de comer, ou de vestir, ou resolver qualquer tipo de pequeno acidente, é tudo um drama!...". Partilham comigo o momento em que André se esqueceu de levar a mochila com os cadernos para a escola, precisamente no dia em que o filho ía ser avaliado. Disse Joana: “apenas funcionou porque ele me estava sempre a ligar a perguntar o que é que devia vestir ao filho... e então, mais tarde, acabei por ligar eu a confirmar se estava tudo bem, quando, já no carro, ele me disse que não tinha levado a mochila. Acha normal, Doutor?"
Há muito tempo que Joana sente necessidade de ter tudo controlado e organizado, caso contrário tudo se desmorona. Recorda o momento em que o pai morreu, quando era pequena, a partir do qual teve que gerir a aflição da mãe que perdeu todas as capacidades de tomar decisões. Joana teve que criar uma estrutura que não falhasse, que não a deixasse sentir-se a si própria, porque se promovera, ou melhor, fora promovida, a cuidadora da própria mãe. O uso do termo "promoção" é porque acredito que quando estamos a desenvolver a nossa personalidade somos principalmente guiados por uma necessidade de validação, como se se tratasse de uma espécie de promoção emocional que nos leva a sentirmos que pertencemos àqueles que nos fazem crescer. Precisamos de nos sentirmos válidos porque isso nos autoriza a avançar sob o aval de quem consideramos competente para realizar a nossa avaliação.


Qual é a noção de competência que atribuímos ou reconhecemos nos outros quando temos 10 anos de idade? 

Provavelmente a competência, quando somos novos, implica uma sensação de influência, proteção, poder, afeto, interpretação frequente dos nossos sinais e resposta a eles. Penso, portanto, que uma criança, perante um acontecimento de vida crítico familiar que destitui a pessoa competente do lugar de competência, como a morte de um pai ou uma mãe, fará de tudo para restabelecer o equilíbrio emocional do seu protetor ou protetora. Neste processo, tendencialmente irracional, a criança acaba enfeitiçada no seu próprio feitiço, ou seja, torna-se ela própria competente, validante, crítica, gestora, cuidadora e todos os outros “oras” característicos dos adultos em posição de figuras de competência. Apenas a competência lhe trará validação enquanto que toda e qualquer aflição ou erro serão percebidos como negativos, nocivos e sinónimos de cristalização. Por esta razão, André não tem competência. Não pode ser responsável nem cuidador porque se aflige. 
André, por sua vez filho único de pais distantes, frios e autoritários, construiu o seu universo de validações através de silêncios, obediências e sucessos escolares, desbravando sempre que possível o seu mundo de aventuras privadas. Através de conversas consigo próprio aprendeu a jogar xadrez, a brincar aos legos e a ler nos seus próprios sentimentos os sentimentos dos outros. Não era autorizado a entrar nos diálogos, porque incomodava. Respondendo a Joana, diz que está farto de ser um saco de box, que "apanha, apanha e volta a apanhar”. Gostava que Joana tivesse um pouco mais de calma com a crítica, que fosse mais relaxada, que confiasse nas suas competências. Mas Joana não pode confiar e André não se pode zangar porque não se sente legitimado para responder. Joana e André criaram um cenário relacional bastante familiar para cada um deles. Aliás, Joana e André criaram “o” cenário familiar, cuja trama perpetua as dificuldades de afirmação dos filhos em relação aos pais. Não podem arriscar um confronto verdadeiro porque sairiam destruídos ou destruidores. Não podem sequer imaginar que o erro de cada um poderia ser finalmente a liberdade do outro.