fonte da imagem: cleofas.com.br |
Existe quem viva a fugir da morte e existe quem repugne a
vontade de morrer. São esquemas de sobrevivência imbuídos numa cultura que toma
a morte como o demónio da vida, uma espécie de aberração enfeitiçada que quando
é personificada na imagem ou intenção de alguém, condena à guilhotina social, à
pena e à punição. Somos ainda escravos de uma inquisição que nos matou os
monstros em praça pública, esses monstros que mais não eram se não a
manifestação da vida, com toda a diversidade, contradição e provocação que essa
vida implica. Esses monstros são também os receios da mudança alojados nas
pupilas dos olhos de quem mata. Quem quer matar é quem não consegue ou não pode
tolerar a dor da transformação e quem quer morrer é quem não pode ou não
consegue viver sem ela (transformação). Todos morremos todos os dias. Todos
queremos desaparecer de vez em quando. Mas nunca queremos acabar com a vida! A
vontade de morrer é uma vontade de mudança que intensifica quando nos obstruem
os horizontes.
No verão a vontade de morrer pode intensificar-se. Tudo está
quente e aberto à nossa volta, condenando qualquer espécie de frio ou aperto do
coração a uma enorme sensação de isolamento e alienação. Em Julho e Agosto
conversei na consulta com rapazes e raparigas que queriam desaparecer, acabar
com tudo. Relações que terminaram abruptamente ou uma crítica destrutiva de
alguém próximo e importante foram algumas das hecatombes enunciadas, também
designadas como factores precipitantes das tentativas de morte que acabariam
por desencadear, através de uma ingestão desesperada mas planeada, dos
medicamentos recentemente prescritos pelo médico psiquiatra.
Duas conclusões são inevitáveis quando se conversa a fundo
sobre a morte: em primeiro lugar, raramente a morte pretende o fim, a morte vislumbra,
sobretudo, transformação (da própria imagem, da relação consigo próprio e com
os outros, das expectativas dos outros face ao próprio desempenho, entre tantos
outros); em segundo lugar, o factor precipitante nunca explica a totalidade do
desespero. As pessoas com vontade de morrer precisam, acima de tudo, de sentir
que lhes é reconhecido o direito a sofrer, direito que lhes foi sonegado pelos
rastos das tais guilhotinas sociais. A perda da mãe ou do pai numa idade
precoce, um contexto de violência traumática, um abuso sexual por parte de um
familiar são, por vezes, minas de silêncio transportadas num corpo fragilizado
e gerido por uma cabeça que se rege, desde o trauma, por um comando tão eficaz
quanto fatal: "tens que andar para a frente, não podes parar!".
Numa das ultimas consultas de Julho, Pedro confessava-me que
talvez pudesse acreditar na vida se um dia entrasse em casa e alguém lhe
dissesse "não faz mal". "Não faz mal", explicou-me o Pedro,
é não injetar no sofrimento a urgência da cura. Essa urgência já ele tem há
muito tempo. O que Pedro não tem é um plano de contingência partilhado onde
seja possível ficar a quatro mãos com a dor, no caso desta não se ir logo
embora. O que Pedro quer não é fácil. Mas também não é difícil. É apenas sentir
a dor mais humana e menos demoníaca. É não ser guilhotinado pelos seus gostos,
preferências ou intenções de vida. O que o Pedro precisa é de estar na dor.
Estar. Na dor. E nesse estar, transformar uma relação. Na realidade, a única
coisa que o Pedro quer que morra, é a condição contrária, ou seja, a que
determina que só é possível construir uma relação se não doer. Esta intenção de
Pedro vivemo-la nós todos os dias nas nossas relações dez segundos antes de
calarmos as angustias, silenciarmos os medos e renunciarmos a um verdadeiro
questionamento de nós próprios por medo de ferir os outros. Mas, tal como nas
praias do nosso agosto, só a hipótese real de nos ferirmos nos faz sentir tão
curiosos pelos mistérios marinhos e fascinados por essa exploração.
Daqui resulta que uma sugestão minha para este verão é que
nos perguntemos uns aos outros o que é que dói. Que não deixemos despercebido
nem abandonado na bússola interna de cada um qualquer vestígio de dor. Que
esmiucemos a solidão sem afunilar os túneis do pensamento. Que convidemos um
amigo, amiga, tio, sobrinha, pai, avó, a estar um pouco na dor. Que perguntemos
a essa gente o que não lhes está a correr bem ou o que mudariam se pudessem,
neste momento da vida deles. E, se não tivermos resposta para a resposta deles,
que, muito simplesmente, nos deixemos estar, proferindo em voz alta ou em
silêncio a melhor das encomendas: "não faz mal".
Sem comentários:
Enviar um comentário